domingo, 1 de julho de 2012

Pintar a Saudade - Conto

Mais um conto, desta vez num contexto familiar onde se vive saudade e tristeza devido a uma perda de peso. Espero que gostem!


Todos os dias a culpa invadia-a, tal e qual como o sol levantava-se. Sara não podia fazer nada, ela penetrava-lhe o coração e fazia-a chorar, sempre. Já se tinha passado tanto, mas tanto tempo e a dor era sempre igual: pela manhã, a história aparecia-lhe na mente de uma forma tão verídica, quanto dolorosa.
Catorze anos atrás. Era para ser um dia especial, afinal não era todos os dias que havia uma visita de estudo ao Jardim Zoológico. A turma toda estava eufórica, inclusive ela e o irmão, Gonçalo. A viagem ia durar, pelo menos, duas horas e ambos decidiram dormir.
O autocarro já tinha chegado e todos acordado, menos Gonçalo. Mal sabiam que o sono dele seria eterno. O irmão sempre teve problemas cardíacos, mas nunca nenhum médico deu a indicação de que ele poderia ser vítima de um ataque cardíaco. Nunca mais Sara foi a mesma. Nunca mais a mãe foi a mesma. Tudo mudou naquele dia, para sempre.
A mãe tornou-se fria com ela, dizendo-lhe sempre na cara que a culpa fora dela. E Sara cresceu com essa dor e, sobretudo, com uma culpa tão grande que nunca terminaria.
Sara tinha talento para a pintura e, desde cedo, a mãe soube aproveitar-se disso. Ela queria ser arquiteta mas a mãe obrigou-a a ser pintora. Tinha pena da mãe, afinal esta atirava-lhe sempre à cara que ela era a sua única filha e que tinha trabalhado toda a vida para ver a filha feliz e numa profissão que lhe agradasse.
Um dia, tinha ido verificar a caixa de correio e ficou estupefacta ao ver uma carta da sua escola em seu nome. Decidiu logo abri-la e lê-la. A missiva dava-lhe os parabéns pelas suas ótimas notas no curso de Artes e oferecia-lhe gratuitamente a estadia numa escola de renome em Inglaterra para aprofundar os seus conhecimentos, com direito a um acompanhante. A jovem quase chorou de alegria e foi logo contar a novidade à sua mãe.
Duas semanas depois as duas tinham chegado à capital do país inglês. A escola era moderna, os professores exigentes mas profissionais, enfim, Sara só tinha motivos para estar feliz. No entanto, embora amasse a pintura, não se sentia completa. Ao mesmo tempo, quando pensava na mãe, tudo mudava de figura e desistira da ideia de mudar de profissão.
Dois meses depois, a jovem tinha voltado para casa, em Portugal, com a mãe. No dia seguinte recebia uma carta da Galeria de Arte Lisboeta a convidá-la para criar uma exposição sua a ser colocada neste tão nobre espaço, lado a lado com figuras incontornáveis, tais como Paula Rego ou Vieira da Silva.
A hora havia sido chegada. Seria nesta exposição que homenagearia o irmão. Estava decidido. Para isso, primeiro pediu à mãe para ir visitar o quarto do irmão, onde se inspiraria. A mãe primeiro proibi-a, mas depois, pensando no dinheiro que poderia ganhar com o lucro da venda dos quadros, lá a deixou ir.
Depois de três semanas de árduo trabalho, a jovem tinha há sua frente doze quadros retratando todos os momentos felizes da curta vida do seu irmão. Depois disto, saiu de casa e foi à Galeria avaliar o espaço onde poderia colocar as peças e saber pormenores da exposição.
A mãe, curiosíssima para ver o resultado final, ganhou coragem e decidiu entrar no quarto. Ficou chocada! Tinha que dar os parabéns à filha: bastava olhar para qualquer lado que lhe vinha logo à mente uma memória feliz do filho. Mas logo depois a raiva tomou-lhe conta do coração: lembrou-se da morte do filho, da dor que ainda tinha no peito mas, sobretudo lembrou-se que a filha era a culpada por todo o inferno que viveu após a ida do seu primogénito.
Pegou nos quadros todos e levou-os para o quintal. Aí deitou-lhos gasolina por cima e largou um palito em cima. O fogo estava alto. Gritou aos quatro ventos como uma louca, amaldiçoando a filha, acusando-a da morte do irmão. Logo depois, pegou numa caixa, colocou lá dentro todas as cinzas dos quadros, e foi pô-la no quarto de Gonçalo.
Não contente com isto, escreveu uma carta dizendo que a filha tinha vinte e quatro horas para sair de casa e que nunca mais a queria ver na frente.
À noite, quando Sara chegou a casa ficou chocada com o ocorrido. A carta era bem clara. Pegou numa mochila onde colocou roupa e objetos indispensáveis juntamente com a tela de pintura e todos os guaches e pincéis que tinha.
Era noite cerrada e as lágrimas caíam-lhe pela cara abaixo. Dirigiu-se para o rio em frente à sua casa. Neste rio brincara dias a fio com o seu irmão, durante a pequena infância feliz que teve. Abriu o cavalete e começou a pintar a cara do irmão. Misturou todas as cores mas, mesmo assim, a face do irmão estava resplandecente no quadro. Quando todos os guaches tinham terminado, usou as lágrimas para pintar.
Sentara-se a falar com o irmão e a admirar a sua obra-prima. Tinha saudades dele e a culpa acentuara-se como nunca. Dirigiu-se ao rio e atirou-se de mergulho. A respiração cessou imediatamente, para sempre. Partia agora atrás do único amor da sua vida.

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