Mais um conto, desta vez num contexto familiar onde se vive saudade e tristeza devido a uma perda de peso. Espero que gostem!
Todos os dias a culpa invadia-a,
tal e qual como o sol levantava-se. Sara não podia fazer nada, ela
penetrava-lhe o coração e fazia-a chorar, sempre. Já se tinha passado tanto,
mas tanto tempo e a dor era sempre igual: pela manhã, a história aparecia-lhe na
mente de uma forma tão verídica, quanto dolorosa.
Catorze anos atrás. Era para ser
um dia especial, afinal não era todos os dias que havia uma visita de estudo ao
Jardim Zoológico. A turma toda estava eufórica, inclusive ela e o irmão,
Gonçalo. A viagem ia durar, pelo menos, duas horas e ambos decidiram dormir.
O autocarro já tinha chegado e
todos acordado, menos Gonçalo. Mal sabiam que o sono dele seria eterno. O irmão
sempre teve problemas cardíacos, mas nunca nenhum médico deu a indicação de que
ele poderia ser vítima de um ataque cardíaco. Nunca mais Sara foi a mesma.
Nunca mais a mãe foi a mesma. Tudo mudou naquele dia, para sempre.
A mãe tornou-se fria com ela,
dizendo-lhe sempre na cara que a culpa fora dela. E Sara cresceu com essa dor
e, sobretudo, com uma culpa tão grande que nunca terminaria.
Sara tinha talento para a pintura
e, desde cedo, a mãe soube aproveitar-se disso. Ela queria ser arquiteta mas a
mãe obrigou-a a ser pintora. Tinha pena da mãe, afinal esta atirava-lhe sempre
à cara que ela era a sua única filha e que tinha trabalhado toda a vida para
ver a filha feliz e numa profissão que lhe agradasse.
Um dia, tinha ido verificar a
caixa de correio e ficou estupefacta ao ver uma carta da sua escola em seu
nome. Decidiu logo abri-la e lê-la. A missiva dava-lhe os parabéns pelas suas
ótimas notas no curso de Artes e oferecia-lhe gratuitamente a estadia numa
escola de renome em Inglaterra para aprofundar os seus conhecimentos, com
direito a um acompanhante. A jovem quase chorou de alegria e foi logo contar a
novidade à sua mãe.
Duas semanas depois as duas
tinham chegado à capital do país inglês. A escola era moderna, os professores
exigentes mas profissionais, enfim, Sara só tinha motivos para estar feliz. No
entanto, embora amasse a pintura, não se sentia completa. Ao mesmo tempo,
quando pensava na mãe, tudo mudava de figura e desistira da ideia de mudar de
profissão.
Dois meses depois, a jovem tinha
voltado para casa, em Portugal, com a mãe. No dia seguinte recebia uma carta da
Galeria de Arte Lisboeta a convidá-la para criar uma exposição sua a ser
colocada neste tão nobre espaço, lado a lado com figuras incontornáveis, tais
como Paula Rego ou Vieira da Silva.
A hora havia sido chegada. Seria
nesta exposição que homenagearia o irmão. Estava decidido. Para isso, primeiro
pediu à mãe para ir visitar o quarto do irmão, onde se inspiraria. A mãe
primeiro proibi-a, mas depois, pensando no dinheiro que poderia ganhar com o
lucro da venda dos quadros, lá a deixou ir.
Depois de três semanas de árduo trabalho,
a jovem tinha há sua frente doze quadros retratando todos os momentos felizes
da curta vida do seu irmão. Depois disto, saiu de casa e foi à Galeria avaliar
o espaço onde poderia colocar as peças e saber pormenores da exposição.
A mãe, curiosíssima para ver o
resultado final, ganhou coragem e decidiu entrar no quarto. Ficou chocada!
Tinha que dar os parabéns à filha: bastava olhar para qualquer lado que lhe
vinha logo à mente uma memória feliz do filho. Mas logo depois a raiva
tomou-lhe conta do coração: lembrou-se da morte do filho, da dor que ainda
tinha no peito mas, sobretudo lembrou-se que a filha era a culpada por todo o
inferno que viveu após a ida do seu primogénito.
Pegou nos quadros todos e
levou-os para o quintal. Aí deitou-lhos gasolina por cima e largou um palito em
cima. O fogo estava alto. Gritou aos quatro ventos como uma louca, amaldiçoando
a filha, acusando-a da morte do irmão. Logo depois, pegou numa caixa, colocou
lá dentro todas as cinzas dos quadros, e foi pô-la no quarto de Gonçalo.
Não contente com isto, escreveu
uma carta dizendo que a filha tinha vinte e quatro horas para sair de casa e
que nunca mais a queria ver na frente.
À noite, quando Sara chegou a
casa ficou chocada com o ocorrido. A carta era bem clara. Pegou numa mochila onde
colocou roupa e objetos indispensáveis juntamente com a tela de pintura e todos
os guaches e pincéis que tinha.
Era noite cerrada e as lágrimas
caíam-lhe pela cara abaixo. Dirigiu-se para o rio em frente à sua casa. Neste
rio brincara dias a fio com o seu irmão, durante a pequena infância feliz que
teve. Abriu o cavalete e começou a pintar a cara do irmão. Misturou todas as
cores mas, mesmo assim, a face do irmão estava resplandecente no quadro. Quando
todos os guaches tinham terminado, usou as lágrimas para pintar.
Sentara-se a falar com o irmão e
a admirar a sua obra-prima. Tinha saudades dele e a culpa acentuara-se como
nunca. Dirigiu-se ao rio e atirou-se de mergulho. A respiração cessou
imediatamente, para sempre. Partia agora atrás do único amor da sua vida.
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